Epiousion
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A palavra grega epiousion (ἐπιούσιον; forma lemática: epiousios) é um hápax de significado controverso que aparece na oração do Pai Nosso, referida em Mateus 6:11 e Lucas 11:3. É um adjetivo qualificando o substantivo artos (ἄρτος), que significa "pão".
Em português, epiousion é tradicionalmente traduzido como "de cada dia"; traduções para outros idiomas também usam termos similares, como daily ("diário") nas versões de língua inglesa da Bíblia. No entanto, esse sentido é rejeitado pela maioria dos acadêmicos atuais. A interpretação da palavra depende, portanto, de análise contextual e morfológica.[1]
O significado de epiousion já intrigava tradutores no século IV.[2] Em 382 d.C., São Jerônimo foi convocado pelo Papa Dâmaso I para renovar e consolidar as várias traduções de textos bíblicos na Vetus Latina, à época usada pela Igreja. Jerônimo realizou essa tarefa voltando ao Novo Testamento em sua língua original, grego, e traduzindo-a para o latim; sua tradução ficou conhecida como a Vulgata. Nos contextos idênticos de Mateus e Lucas—isto é, em relação ao Pai Nosso—Jerônimo traduziu epiousion de duas maneiras diferentes: como "supersubstancial" (supersubstantialem) por análise morfológica em Mateus e mantendo a tradução tradicional (quotidianum, "cotidiano") em Lucas.
O atual Catecismo da Igreja Católica afirma que há vários entendimentos possíveis de epiousion, incluindo o tradicional ("de cada dia"), mas o significado literal com base em seus componentes morfológicos é supersubstancial ou superessencial.[3] Há também teorias alternativas afirmando que, além da etimologia de ousia ("substância"), a palavra pode descender também tanto do verbo einai (εἶναι), que significa "ser", como do verbo ienai (ἰέναι), que significa "ir" ou "vir".[4][5]
Frequência e peculiaridades
[editar | editar código-fonte]A palavra aparece no Papiro Hanna 1 (p75)—"Mater Verbi" (Mãe da Palavra), o mais antigo fragmento contendo certas passagens do Novo Testamento.[6]
O adjetivo Epiousion é único no Pai Nosso. É masculino, acusativo, singular, concordando em gênero, número, e caso com o substantivo que qualifica, ἄρτον (arton). Na glosa interlinear:
Τὸν ἄρτον ἡμῶν τὸν ἐπιούσιον δὸς ἡμῖν σήμερον[7] O pão nosso - epiousion dá- nos hoje[8] "Dá-nos hoje o nosso pão epiousion. "
Conforme Novum Testamentum Graece, uma fonte de padrões acadêmicos e traduções atuais do Novo Testamento, a palavra aparece apenas em Mateus 6:11 e Lucas 11:2 como parte do Pai Nosso. Isso torna epiousion um dis legomenon, ou seja, aparece apenas duas vezes. O Didache, um guia de catecismo do primeiro ou segundo século, também cita ἐπιούσιον a partir do Pai Nosso do livro de Mateus.
No século XX, outra possibilidade veio à tona. Em uma lista de compras datada do século V (Sammelbuch 5224,20[9][10]) a palavra transcrita como epiousion aparece próxima a vários itens da lista. Isso parece indicar que o termo fora usado no sentido de "suficiente por hoje", "suficiente para amanhã" ou "necessário". Contudo, depois de muitos anos perdido, o papiro contendo a lista foi redescoberto na biblioteca de Yale Beinecke em 1998,[11] e um novo exame encontrou elaiou (óleo), não epiousion — aparentemente, o transcritor original A. H. Sayce era conhecido como um "transcritor ruim". Ademais, o documento foi reavaliado como datado do século I ou II, não V.[11] Desse modo, o uso de epiousion parece não ocorrer na literatura em grego antigo além de Mateus, Lucas e O Didache. Epiousei, usado somente em Atos 7:26,[12] indica próximo dia, e provavelmente é apenas uma palavra cognata.[13]
Traduções e interpretações
[editar | editar código-fonte]Há várias razões pelas quais epiousion apresenta um desafio de tradução excepcional. A palavra não aparece em nenhum outro texto em grego koiné e pode ter sido cunhada pelos autores do evangelho. Certamente Jesus não compôs a oração em grego, e sim em sua língua nativa (aramaico ou hebraico); apesar disso, o consenso na academia é de que o Novo Testamento tenha sido escrito em koiné. Isso implica que, inicialmente, o aramaico ou hebraico tenha sido interpretado diretamente para koiné. Ou seja, a tradução torna-se mais incerta, porque não é possível verificar referências cruzadas ou comparar o termo em outros contextos, apenas analisar a morfologia.
A análise morfológica mais popular destaca epi- como prefixo e interpreta ousia como uma palavra polissemântica, embora esse modelo não siga o padrão grego de composição de palavras. Normalmente, o iota ao final de epi (ἐπι) seria removido em uma composição onde o segundo termo começa em vogal (compare, por exemplo, epônimo vs epígrafo).[13]:88 Todavia, essa regra não é absoluta: Jean Carmignac reuniu 26 palavras compostas que violam essa regra.[14]
Em suma, acadêmicos modernos e clássicos propuseram diferentes traduções para epiousion. Mesmo Jerônimo, o tradutor mais importante da Bíblia em latim, traduziu a mesma palavra no mesmo contexto de duas maneiras diferentes. No presente, não há consenso sobre seu significado exato. A seguir, um resumo sobre diversas opções de tradução:
De cada dia
[editar | editar código-fonte]De cada dia (diário) tem sido, por muito tempo, a tradução mais comum em português para epiousion. Esse é o termo usado na Almeida Revista e Atualizada, King James Atualizada, Nova Versão Internacional, entre outras versões. Isso baseia-se na interpretação de epi como para, e ousia como ser; assim sendo, a palavra significaria para o [dia] ser, onde dia é implícito.[15]
Essa versão é baseada na tradução latina de epiousion como quotidianum (diário) ao invés de supersubstantialem (supersubstancial). O primeiro registro dessa interpretação foi encontrado nos trabalhos de Tertuliano[16]:251 e acabou sendo usado na Vetus Latina, uma coleção de termos de variações do latim antigo em Bíblias anteriores à Vulgata.
A Vulgata, de Jerônimo, é uma tradução latina do final do século IV da Bíblia a partir de suas línguas originais. Em 382, o Papa Dâmaso I delegou a Jerônimo uma revisão da Vetus Latina com relação aos evangelhos. A partir dos componentes morfológicos, Jerônimo traduziu epiousion, em Lucas 11:3, como quotidianum e, em Mateus 6:11, como supersubstantialem. O termo quotidianum ainda incide na missa da Igreja Católica, embora a mesma utilize supersubstantialem mais frequentemente.[17]:59[18]
Há quem considere epiousion uma alusão a Exôdo 16:4, onde Deus promete provisões na forma de maná a cada dia. Dessa forma, o verso seria uma tentativa de traduzir "pão suficiente para o dia" de hebraico para grego.[19]:147
Contemporaneamente, a maioria dos acadêmicos descarta a tradução de epiousion como sendo de cada dia (diário). Essa palavra tem apenas uma fraca conexão etimológica com epiousion — termo esse que significa "próximo" e é usado no contexto de "próximo dia" ou "próxima noite".[20]:20-21 Inclusive, todas as outras incidências com o significado de "diário" no Novo Testamento basearam-se no termo hemera (ἡμέρα, "dia").[8][21][22][23][24][25][26][27][28][29][30] Não haveria razão aparente que justificasse a utilização de uma palavra tão hermética como epiousion.[15] Além disso, tradução de cada dia torna o termo redundante, pois o verso já contém a palavra dia, suficiente para indicar que o pão é para o dia de hoje.[31]:59
Supersubstancial
[editar | editar código-fonte]A Vulgata de Jerônimo traduz epiousion, em Mateus 6:11, como supersubstantial (supersubstancial), cunhando um termo novo no latim.[32] Essa tradução considera que o prefixo epi- signifique super, e ousia, substância.
Defesa
[editar | editar código-fonte]Essa interpretação foi apoiada por autores clássicos, como Agostinho de Hipona, Cirilo de Jerusalém, Cipriano de Cartago e João Cassiano.[31][32]:159 Também é a tradução usada em algumas Bíblias modernas, como a Bíblia de Douay–Rheims (Mateus 6:11–63). Outrossim, essa tradução também é associada com a eucaristia, tão primordial quanto os Patriarcas,[33]:154 e confirmada depois no Concílio de Trento (1551).[34]
Em 1979, a Nova Vulgata — também conhecida como Neovulgada — tornou-se a nova edição oficial da Bíblia publicada pela Santa Sé para o uso contemporâneo no Rito romano. A Nova Vulgata mantém os mesmos termos usados na Vulgata: supersubstantialem, em Mateus, e quotidianum, em Lucas.
Atualmente, a Igreja Católica instrui sua doutrina via o Catecismo da Igreja Católica, o qual prevê vários significados para epiousion, em especial, "supersubstancial".[35] Na Igreja Ortodoxa, "supersubstancial" é considerado a tradução mais fiel.[36]
Metáfora para Eucaristia
[editar | editar código-fonte]Essa tradução é corriqueiramente associada à eucaristia. O "pão necessário para a existência" é a hóstia da última Ceia. Para Eugene LaVerdiere, padre Católico e estudioso das escrituras na era pós-Vaticano II, o fato dos autores dos evangelhos terem criado um termo novo indica a descrição de algo inédito. Comer a hóstia na última ceia acarretou na necessidade de uma nova palava para um novo conceito.[37]:9
Supersubstantialem (supersubstancial) foi a tradução dominante para a palavra epiousion em Mateus por muitos séculos após Jerônimo, ao ponto de influenciar o rito cristão. Essa é a base da argumentação de Cipriano de Cartago de que a hóstia precisa ser consumida diariamente[38] O fato de apenas o pão ser citado, e não o vinho, levou à prática da utilização apenas de pão na Eucaristia em alguns casos. Da mesma maneira, esse verso é um dos argumentos usados contra o Utraquismo. A tradução do termo foi reconsiderada com a Reforma Protestante. Originalmente Martinho Lutero manteve a versão supersubstancial, mas trocou em 1528 por diariamente.[38]
Crítica
[editar | editar código-fonte]Brant Pitre, teólogo do Seminário de Notre Dame, ressalva que a tradução supersubstancial, a despeito de ter sido amplamente empregada pelos cristãos primitivos, não recebe praticamente nenhum apoio entre os exegetas modernos.[32] Entre aqueles que rejeitam essa tradução estão alguns estudiosos bíblicos da Igreja Católica, como Raymond E. Brown,[39] Jean Carmignac,[40] e Nicholas Ayo.[31]
Não há fonte conhecida para a palavra na língua nativa de Jesus (aramaico ou hebraico) que seja traduzida como epiousion em grego. Muito menos há uma palavra nessas línguas que seja facilmente traduzida como supersubstancial.[15]
M. Eugene Boring, teólogo protestante da Universidade Cristã do Texas, alega que a conexão entre a eucaristia é anacrônica, pois o ritual cristão viria a se desenvolver apenas depois que o evangelho foi escrito e, assim sendo, Mateus não teria conhecimento quanto a eucaristia.[41] Craig Blomberg, outro acadêmico protestante do Novo Testamento, concorda, afirmando que esses conceitos ainda haveriam de ser introduzidos por Jesus a essa altura e, portanto, não poderiam fazer parte do significado do Pai Nosso.[42]:131
Para o futuro
[editar | editar código-fonte]A tradução "para o futuro" é a mais aceita entre os acadêmicos atualmente.[43]:175 Outros apoiadores dessa tradução incluem Cirilo de Alexandria e Pedro de Laodiceia. A palavra epiousion teria relação com o verbo epienai ("de amanhã").[44][45]:217 Segundo o teólogo judeu Herbert Basser, essa tradução também foi considerada como uma possibilidade — posteriormente rejeitada — por Jerônimo, o qual anotou ao lado de seu comentário sobre Mateus que o evangelho dos hebreus usou ma[h]ar ("para amanhã") em seu verso.[46]:185
Afora o significado literal, essa tradução também pode ser lida em um contexto escatológico: "o pedido por uma antecipação do mundo que virá".[47] Outros veem amanhã como que referenciando o fim dos tempos, e pão, o banquete messiânico.[48]:32 Raymond Brown alega que todos os outros versos do Pai Nosso são escatológicos, então seria incongruente que esse trecho falasse sobre comer pão prosaicamente.[49] Eduard Schweizer, estudioso do Novo Testamento e teólogo suíço, discorda. O pão não é tradicionalmente apresentado como parte da ceia celestial, e a prosaica necessidade por pão para sobrevivência seria um símbolo do sentimento universal de Jesus para com seus seguidores.[50]
De acordo com o teólogo católico Brant Pitre, a interpretação de que epiousion significa "para o futuro" é "surpreendentemente (...) endossada pela maioria dos acadêmicos atuais", mas a principal fraqueza dessa visão é sua falta de reconhecimento pelos primeiros intérpretes cristãos que traduziram a palavra, "cujo domínio da língua grega era tão bom quanto ou até superior ao dos estudiosos atuais".[4] Ele também afirma que a tradução de epiousion como "supernatural" é a mais literal possível e era amplamente usada pelos autores da antiguidade, fato esse que "estranhamente, passa por vezes despercebido em estudos atuais".[4]
Em sua análise, o Papa Bento XVI expressou uma ideia parecida sobre o assunto, afirmando que "o fato é que os Pais da Igreja eram praticamente unânimes no seu entendimento de que a quarta petição do Pai Nosso é uma petição eucarística".[47][51]
Como várias falhas lógicas e linguísticas existem na tradução "para o futuro", o enigma envolvendo epiousion ainda persiste. Além da fraca etimologia relativa a epienai, a interpretação "para o futuro" raramente é considerada apropriada pelos autores clássicos, os quais, presume-se, tinham mais conhecimento sobre koiné que qualquer acadêmico moderno.[32] Também é notório que a forma adjetival para "futuro" exista em koiné, por exemplo, em Mateus 6:34 (aurion), e poderia facilmente substituir epiousion.[52]
Ainda, um outro problema com a tradução "para o futuro" é parecer contraditória, dado que, nos versos seguintes (Mateus 6:31), Jesus diz para seus seguidores não se preocuparem com comida, porque Deus tomaria conta de suas necessidades. Por outro lado, W. D. Davies, estudioso congregacionalista galês, e Dale Allison, estudioso americano do Novo Testamento, não veem nisso uma contradição. O fato de uma pessoa piedosa pedir a Deus, em oração, para que suas necessidades sejam satisfeitas pode ser o motivo pelo qual não há necessidade de se preocupar.[5]
Referências
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