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Uma ode de Anacreonte

Wikisource, a biblioteca livre
UMA ODE


DE ANACREONTE


(QUADRO ANTIGO).
A


MANOEL DE MELLO.
PERSONAGENS




LYSIAS.
CLEON.
MYRTO.
TRES ESCRAVOS.


A scena é em Samos.
UMA ODE DE ANACREONTE


A scena é em Somos.

Sala de festim em casa de Lysias. A esquerda a mesa do festim; á direita uma mesa tendo em cima uma lampada apagada, e junto da lampada um rolo de papyro.


SCENA I
LYSIAS, CLEON, MYRTO.
(Estão no fim de um banquete, os dous homens deitados á maneira antiga, Myrto sentada entre os dous leitos. Tres escravos.)


LYSIAS.

Melancolica estás, bella Myrto. Bebamos!
Aos prazeres!


CLEON.

         Eu bebo á memoria de Samos.
Samos vai terminar os seus dourados dias;
Adeus, terra em que achei consolo ás agonais
Da minha mocidade; adeus, Samos, adeus!


MYRTO.

Querem-lhe os deuses mal?

CLEON.

                        Não; dous olhos, os teus.


LYSIAS.

Bravo, Cleon!


MYRTO.

                  Poeta! os meus olhos?

CLEON.

                                São lumes
Capazes de abrasar até os proprios numes.
Samos é nova Troya, e tu és outra Helena,
Quando Lesbos, a mão do Sappho, a ilha amena,
Não vir a bella Myrto, a alegre cortezã,
Armar-se-ha contra nós.


LYSIAS.

                        Lesbos é boa irmã.


MYRTO.

Outras bellezas tem, dignas da loura Venus.


CLEON.

Menos digna de tu.


MYRTO.

                        Mais do que eu.


LYSIAS.

                         Muito menos.


CLEON.

Tens vergonha de ser formosa e festejada,

Myrto? Venus não que beleza envergonhada.
Pois que dos immortaes houveste esse condão
De inspirar quantos vês, inspira-os, Myrto.


MYRTO.

                              Não;
São teus olhos, poeta; eu não tenho a belleza
Que arrasta corações.


CLEON.

                        Divina singeleza!


LYSIAS (á parte).

Vejo através do manto as galas da vaidade.

(Alto.)

Vinho, escravo!

(O escravo deita vinho na taça de Lysias.)

                  Poeta, um brinde á mocidade.
Trava de lyra e invoca o deus inspirador.


CLEON.

«Feliz em junto de ti, ouve a tua falla, amor!»


MYRTO.

Versos de Sapho!


CLEON.

                  Sim.


LYSIAS.

                        Vês? ó modestia pura.
Elle é na poesia o que és na formosura.

Faz versos de primor e esconde-os ao profano:
Tem vergonha. Eu não sei se o vicio é lesbiano...


MYRTO.

Ah! tu és...


CLEON.

         Lesbos foi minha patria tambem,
Lesbos, a flôr do Egeo.


MYRTO.

                        Já não é?

CLEON.

                         Lesbos tem
Tudo o que me fascina e tudo o que me mata:
As festas do prazer e os olhos de uma ingrata.
Fugi da patria e achei, já curado e tranquillo,
Em Lysias um irmão, em Samos um asylo.
Bem hajas tu que vens encher-me o coração!


LYSIAS.

Insaciavel! Não tens em Lysias um irmão?


MYRTRO.

Volto á patria.


CLEON.

         Pois que! tu vais?


MYRTO.

Em poucos dias... </poem>

LYSIAS.

Fazes mal; tens aqui os moços e as folias,

O gozo, a adoração; que te falta?


MYRTO.

                                Os meus ares.


CLEON.

A que vieste então?


MYRTO.

                  Successos singulares.
Vim por acompanhar Lysicles, mercador
De Naxos; tanto póde a constancia no amor!
Corrêmos todo o Egeo e a costa ionia; fomos
Comprar o vinho a Creta e a Tenodos os pomos.
Ah! como é doce o amor na solidão das aguas!
Tem-se vida melhor; esquecem-se-lhe as mágoas.
Zephyro ouviu por certo os osculos febris,
Os jubilos do affecto, as fallas juvenis;
Ouviu-os, delatou ao deus que o mar governa
A indiscreta ventura, a effusão doce e terna.
Para a furia acalmar da sombria deidade,
Nave e bens varreu tudo a horrivel tempestade.
Foi assim que eu perdi a Lysicles, assim
Que eu semi-morta e fria á tua plaga vim.


CLEON.

Ó coitada!


LYSIAS.

                  O infortunio os animos apura;

As feridas que faz o mesmo Amor as cura;
Brandem armas iguaes Achilles e Cupido.
Queres ver n’outro amor o teu amor perdido?
Samos o tem de sobra.


CLEON.

                  Eu, Myrto, eu sei amar;
Não fio o coração da inconstancia do mar.
Não tenho galeões rompendo o seio a Thetys,
Estrada tanta vez ao torvo e obscuro Lethes.
Aqui me tens; sou teu; escreve a minha sorte;
Pódes doar-me a vida ou decretar-me a morte.


MYRTO.

Mas, se eu volto...


CLEON.

                     Pois bem! aonde quer que te vás
Irei comtigo; a deusa indomita e fallaz
Ser-me-ha hospede amiga; ao pé de ti a escura
Noite parece aurora, e é berço a sepultura.


MYRTO.

Quando falla o dever, a vontade obedece;
Eu devo ir só; tu fica, ama-me um pouco e esquece.


LYSIAS.

Tens razão, bella Myrto; escuta o teu dever.


CLEON.

Ai! é facil amar, difficil esquecer.

LYSIAS (a Myrto).

Queres pôr termo á festa? Um brinde a Venus, filha
Da mar azul, belleza, encanto, maravilha;
Nascida para ser perpetuamente amada.
A Venus!

(Depois do brinde os escravos trazem os vasos com agua perfumada em que os convivas lavaram as mãos; os escravos saem levando os restos do banquete. Levantam-se todos.)

         Queres tu, mimosa naufragada,
Ouvir de hermonia serva, em lyra de marfim,
Uma alegre canção? Preferes o jardim?
O portico talvez?


MYRTO.

                  Lysias, sou indiscreta;
Quizera antes ouvir a voz do teu poeta.


LYSIAS.

Nume não pede, impõe.


CLEON.

                        O mando é lisongeiro.


LYSIAS.

Pois começa.



SCENA II


OS MESMOS, UM ESCRAVO.


ESCRAVO.

         Procura a Myrto um mensageiro.

MYRTO.

Um mensageiro! a mim!


LYSIAS.

                       Mando-o entrar.


ESCRAVO.

                             Não quer.


LYSIAS.

Vai, Myrto.


MYRTO (saindo).

         Volto já. (Sae o escravo).


SCENA III


LYSIAS, CLEON.


CLEON.
(Olhando para o lugar por onde Myrto saiu.)

                  Oh! deuses! que mulher!


LYSIAS.

Ah! que perola rara!


CLEON.

                  Onde a encontraste?


LYSIAS.

                               Achei-a
Com Parthenis que dava uma esplendida ceia;
Parthenis, ex-bonita, ex-jovem, ex-da moda,

Sabes que vê fugir-lhe a enfastiada roda;
E, para não perder o grupo adorador,
Fez do templo deserto uma escola de amor.
Foi ella quem achou a naufraga perdida,
Exposta ao vento e ao mar, quasi a expirar-lhe a vida.
A belleza pagava o emprego de uma esmola;
Dentro em pouco era Myrto a flôr de toda a escola.


CLEON.

Lembrou-te convidal-a então para um festim?


LYSIAS.

Foi um pouco por ella e um pouco mais por mim.


CLEON.

Tambem amas?


LYSIAS.

                     Eu? não. Quis ter á minha mesa
Venus e o louro Apollo, a poesia e a belleza.


CLEON.

Oh! a belleza, sim! Viste já tanta graça,
Tão celestes feições?


LYSIAS.

                        Cuidado! Aquella caça
Zomba dos tiros vãos de ingenuo caçador!


CLEON.

Incredulo!


LYSIAS.

         Eu sou mestre em materia de amor.

Se tu, attento e calmo, a narração lhe ouvisses
Conhecêras melhor o engenho d’esta Ulysses.
Aquelle ardente amor a Lysicles, aquelle
Fundo e intenso pesar que á sua patria a impelle,
Armas são com que a astuta os animos seduz.


CLEON.

Oh! não creio.


LYSIAS.

               Porque?


CLEON.

                        Não vês como lhe luz
Tanta expressão sincera em seus olhos divinos?


LYSIAS.

Sim, tem muita expressão... para illudir meninos.


CLEON.

Pois tu não crês?


LYSIAS.

                  Em que? No naufragio? De certo.
Em Lysicles? Talvez. No amor? é mais incerto.
Na intenção de voltar a Lesbos? isso não!
Sabes o que ela quer? Prender um coração.


CLEON.

Impossivel!


LYSIAS.

            Poeta! estás na alegre idade

Em que a sciencia da vida é a credulidade.
Vês tudo azul e em flôr; eu já me não illudo.
Pois amar cortezãs! isso demanda estudo,
Não vai assim, que as tais abelhitas do amor
Correm de bolsa em bolsa e não de flôr em flôr.


CLEON.

Mas não as amas tu?


LYSIAS.

                        De certo... á minha moda;
Meu grande coração co’os vicios se acommoda;
Sacrificios de amor não sonha nem procura;
Não lhes pede illusões, pede-lhes só ternura.
Não me empenho em achar alma ungida no céu:
Se é crime este sentir, confesso-me, sou réu.
Não peço amor ao vinho; irei pedil-o ás damas?
D’ellas e d’elle exijo apenas estas chammas
Que ardem sem consumir, na pyra dos desejos.
Assim é que eu estimo as amphoras e os beijos.
Lá protestos de amor, eternos e leaes,
Tudo isso é fumo vão. Que queres? Os mortaes
Somos todos assim.


CLEON.

                        Ai, os mortaes! dize antes
Os philosophos máos, ridiculos pedantes,
Os que não sabem crer, os fartos já de amores,
Esses, sim. Os mortaes!

LYSIAS.

                            Refreia os teus furores,
Poeta; eu não quizera amargurar-te, e enfim
Não podia suppôr que a amasse tanto assim.
Caspité! Vais depressa!


CLEON.

                        Ai, Lysias, é verdade,
Amo-a como não amo a vida e a mocidade;
De que modo nasceu esta affeição que encerra
Todo o meu ser, ignoro. Acaso sabe a terra
Por que é mais bella ao sol e ás auras matinaes?
Amores estes são terriveis e fataes.


LYSIAS.

Vês com olhos do céu cousas que são do mundo;
Acreditas achar esse affecto profundo,
N’estas filhas do mal! Se a todo o transe queres
Obter a casta flôr dos celicos prazeres,
Deixa a alegre Corintho e todo o luxo seu;
Outro porto acharás: procura o gyneceo.
Escolhe aquelle amor doce, innocente e puro,
Que inda não tem passado e vive no futuro.
Para mim, já t’o disse, o caso é differente;
Não me importa um nem outro; eu vivo no presente.


CLEON.

Deu-te amiga Fortuna um grande cabedal:

Viver, sem illusões, no bem como no mal;
Não conhecer o amor que morde, que se nutre
Do nosso sangue, o amor funesto, o amor abutre;
Não beber gotta a gotta este brando veneno
Que requeima e destróe; não ver em mar sereno
Subitamente erguer-se a voz dos aquilões.
Afortunado és tu.


LYSIAS.

                  Lei de compensações!
Sou philosopho mau, ridiculo pedante,
Mas inveja-me a sorte; oh! logica de amante.


CLEON.

É a do coração.


LYSIAS.

                  Terrível mestre!


CLEON.

                            Ensina
Dos seres immortaes a transfusão divina!


LYSIAS.

A lição é profunda e escapa ao meu saber;
Outra escola professo, a escola do prazer!


CLEON.

Tu não tens coração.


LYSIAS.

                        Tenho, mas não me illudo.

É Circe que perdeu o encanto e a juventude.


CLEON.

Velho Satyro!


LYSIAS.

                  Justo: um semi-deus sylvestre.
N’estas cousas do amor nunca tive outro mestre.
Tu gostas de chorar; eu cá prefiro rir.
Tres artigos da lei: gozar, beber, dormir.


CLEON.

Compras com isso a paz; a mim coube-me o tedio,
A solidão e a dôr.


LYSIAS.

                  Queres um bom remedio,
Um filtro da Thessalia, um balsamo infallivel?
Esquece emprezas vãs, não tentes o impossivel
Prende o teu coração nos laços de Hymenêo;
Casa-te; encontrarás o amor no gynecêo.
Mas cortezãs! jámais! São Gorgones! Medusas!


CLEON.

Essas que conheceste e tão severo accusas
 — Pobres moças! — não são o universal modelo:
De outras sei a quem coube um coração singelo,
Que preferem a tudo a gloria singular
De conhecer somente a sciencia de amar;
Capazes de sentir o ardor da intensa chamma

Que eleva, que resgata a vida que as infama.


LYSIAS.

Se achares tal milagre, eu mesmo irei pedir-t’o.


CLEON.

Basta um passo, achal-o-hei.


LYSIAS.

                           Bravo! chama-se?


CLEON.

                           Myrto,
Que póde conquistar até o amor de um deus!


LYSIAS.

Crês n’isso?


CLEON.

               Porque não?


LYSIAS.

Tu és um nescio; adeus! </poem>

SCENA IV


CLEON.

Vai, sceptico! tu tens o vicio da riqueza:
Farto, não crês na fome... A minha singeleza
Faz-te rir: tu não vês o amor que absorve e mata;
Myrto, vinga-me tu da calumnia insensata;
Amemo-nos. É ella!

SCENA V


CLEON, MYRTO


MYRTO.

                        Estás triste!


CLEON.

                            Oh! que não!
Mas deslumbrado, sim, como se uma visão...


MYRTO.

A visão vai partir.


CLEON.

                  Mas muito tarde...


MYRTO.

                               Breve.


CLEON.

Quem te chama?


MYRTO.

                  O destino. E sabes quem me escreve?


CLEON.

Tua mãe.

MYRTO.

            Já morreu.


CLEON.

                        Algum antigo amante?

MYRTO.

Lysicles.


CLEON.

         Vive?


MYRTO.

               Sim. Depois de andar errante
N’uma taboa, á mercê das ondas, quiz o céu
Que viesse encontral-o um barco do Pyreu.
Pobre Lysicles! teve em tão cruenta lida
A dôr da minha morte e a dôr da propria vida.
Em vão interrogava o mar cioso e mudo.
Perdêra, de uma vez, n’uma só noite, tudo,
A ventura, a esperança, o amor, e perdeu mais:
Naufragárão com ele os poucos cabedaes.
Entrou em Samos pobre, inquieto, semi-morto,
Um barqueiro, que a tempo atravessava o porto,
Disse-lhe que eu vivia, e contou-lhe a aventura
Da malfadada Myrto.


CLEON.

                        É isso, a sorte escura
Voltou-se contra mim; não consente, não quer
Que eu me farte de amor no amor de uma mulher.
Vejo em cada paixão o fado que me opprime;
O amar é já soffrer a pena do meu crime,
Ixion foi mais audaz amando a deusa augusta;

Transpôz o obscuro lago e soffre a pena justa,
Mas eu não. Antes de ir ás regiões infernaes
São as graças commigo Eumenides fataes!


MYRTO.

Caprichos de poeta! Amor não falta ás damas;
Damas, tem-las aqui; inspira-lhe essas chammas.


CLEON.

Impõe-se leis ao mar? O coração é isto;
Ama o que lhe convem; convem amar a Egistho
Clytemnestra; convem a Cyntia Endymião;
É caprichoso e livre o mar do coração;
De outras sei que eu houvera em meus versos cantado;
Não lhes quero... não posso.


MYRTO.

                     Ai, triste enamorado!


CLEON.

E tu zombas de mim!


MYRTO.

                        Eu zombar? Não; lamento
A tua acerba dôr, o teu fatal tormento.
Não conheço eu tambem esse cruel penar?
Só dous remedios tens; esquecer, esperar.
De quanto almeja e quer o amor nem tudo alcança;
Contenta-se ao nascer co’ as auras da esperança;
Vive da propria mágoa; a propria dôr o alenta.

CLEON.

Mas, se a vida é tão curta, a agonia é tão lenta!


MYRTO.

Não sabes esperar? Então cumpre esquecer.
Escolhe entre um e outro; é preciso escolher.


CLEON.

O prazer que a fulmina, e a dôr que a fortalece?


MYRTO.

Tens na ausencia e no tempo os velhos pais do olvido,
O bem não alcançado é como o bem perdido,
Pouco a pouco se esvai na mente e coração;
Põe o mar entre nós... dissipa-se a illusão.


CLEON.

Impossivel!


MYRTO.

               Então espera; algumas vezes
A fortuna transforma em glorias os reveses.


CLEON.

Myrto, valem bem pouco as glorias já tardias.


MYRTO.

Um só dia de amor compensa estereis dias.


CLEON.

Compensará, mas quando? A mocidade em flôr
Bem cedo morre, e é essa a que convem a amor.

152


Vejo cahir no occaso o sol da minha vida.

Myrto.


Cabeça de poeta, exaltada e perdida!

Pensas estar no occaso o sol que mal desponta?

Cleon.


A clepsydra do amor não conta as horas, conta

As illusões; velhice é perdêl-as assim;

Breve a noite abrirá seus véos por sobre mim.

Myrto
.


Não has de envelhecer; as illusões comtigo

Flôres são que respeita Eolo brando e amigo.

Guarda-as, talvez um dia, e não tarde, as colhamos.

Cleon.


Se eu a Lesbos não vou.

Myrto.

                  Podem colher-se em Samos.

Cleon.

                                      Voltas breve?

Myrto.

Não sei.
Cleon.
                  Oh! sim, deves voltar!

Myrto.


Tenho medo.

Cleon.

                  De que?

MYRTO.

                        Tenho medo... do mar.


CLEON.

Teu sepulcro já foi; o medo é justo; fica.
Lesbos é para ti mais formosa e mais rica.
Mas a patria é o amor; o amor transmuda os ares.
Muda-se o coração? Mudam-se os nossos lares.
Da importuna memoria o teu passado exclue;
Vida nova nos chama, outro céu nos influe.
Fica; eu disfarçarei com rosas este exilio;
A vida é um sonho máu: façamo-la um idylio.
Cantarei a teus pés a nossa mocidade.
A belleza que impõe, o amor que persuade,
Venus que faz arder o fogo da paixão,
Teu olhar, doce luz que vem do coração.
Pericles não amou com tanto ardor a Aspasia,
Nem esse que morreu entre as pompas da Asia,
A Lais siciliana. Aqui as Horas bellas
Tecerão para ti vivissimas capellas.
Nem morrerás; teu nome em meus versos ha de ir,
Vencendo o tempo e a morte, aos seculos porvir.


MYRTO.

Tanto me queres tu!


CLEON.

                        Imensamente. Anceio

Por sentir, bella Myrto, arfar teu brando seio,
Bater teu coração, tremer teu labio puro,
Todo viver de ti.


MYRTO.

                     Confia no futuro.


CLEON.

Tão longe!


MYRTO.

               Não, bem perto.


CLEON.

                                     Ah! que dizes?


MYRTO

                                    Adeus!

(Passa junto da mesa da direita e vê o rolo de papyro.)

Curiosa que sou!


CLEON.

               São versos.


MYRTO.

                                Versos teus?

(Lysias aparece ao fundo.)


CLEON.

De Anacreonte, o velho, o amavel, o divino.


MYRTO.

A musa é toda ionia, e o verso é peregrino.

(Abre o papyro e lê)

«Fez-se Niobe em pedra e Philomena em passaro.
                  «Assim
«Folgaria eu tambem me transformasse Jupiter
                  «A mim.
«Quisera ser o espelho em que o teu rosto magico
                  «Sorri;
«A tunica feliz que sempre se está proxima
                  «De ti;
«O banho de crystal que esse teu corpo candido
                  «Contém;
«O aroma de teu uso e d’onde effluvios magicos
                  «Provêm;
«Depois esse listão que de teu seio turgido
                  «Faz dous;
«Depois do teu pescoço o rosicler de perolas;
                  «Depois...
«Depois ao ver-te assim, unica e tão sem emulas
                  «Qual és,
«Até quisera ser teu calçado, e pisassem-me
                  «Teus pés.»

Que magnificos são!


CLEON.

                        Minha alma assim te falla.

Attendendo ao poeta eu pensava escutal-a.


CLEON.

Eco do meu sentir foi o velho amador;
Tais os desejos são do meu profundo amor.
Sim, eu quizera ser tudo isto — o espelho, o banho,
O calçado, o collar... Desejo acaso extranho,
Louca ambição talvez de poeta exaltado...


MYRTO.

Tanto sentes por mim?


SCENA VI


CLEON, MYRTO, LYSIAS


LYSIAS (entrando.)

                        Amor, nunca sonhado.
Se a musa d’elle és tu!


CLEON.

                        Lysias!


MYRTO.

                               Ouviste?


LYSIAS.

                               Ouvi.
Versos que Anacreonte houvera feito a ti,

Se vivesses no tempo em que, pulsando a lyra,
Estas odes compôz que a velha Grecia admira.

(A Cleon.)

Quer fallar-te um sujeito, um Clinias, um colega,
Ex-mercador, como eu.


MYRTO.

                        Ai, que importuno!


LYSIAS.

                                 Allega
Que não póde esperar, que isto não póde ser,
Que um processo... A final não n’o pude entender.
Pode ser que comtigo o homem se accommode.
Prometeste talvez compor-lhe alguma ode?


CLEON.

Não. Adeus, bella Myrto; espera-me um instante.


MYRTO.

Não tardes!


LYSIAS (á parte.)

                  Indiscreta!


CLEON.

                        Espera.


LYSIAS (á parte.)

                             Petulante!

SCENA VII


MYRTO, LISIAS.


MYRTO.

Sou curiosa. Quem é Clinias, ex-mercador?
Amigo d’elle?


LYSIAS.

                  Mais do que isso; é um credor.


MYRTO.

Ah!


LYSIAS.

      Que bello rapaz! que alma fogosa e pura,
Bem digna de aspirar-te um hausto de ventura!
Queira o céu pôr-lhe termo á profunda agonia,
Surja emfim para elle o sol de um novo dia.
Merece-o. Mas vê lá se ha destino peior:
Quer o alado Mercurio obstar o alado Amor.
Com beijos não se paga a pompa do vestido,
O expetaculo e a mesa; e se o gentil Cupido
Gosta de ouvir canções, o outro não vai com ellas;
Vale uma drachma só vinte odezinhas bellas.
Um poema não compra um simples borzeguim.
Versos! são bons de ler, mais nada; eu penso assim.


MYRTO.

Pensas mal! A poesia é sempre um dom celeste;
Quando o genio o possue quem ha que o não requeste?
Hermes, com ser o deus dos graves mercadores,
Tocou lyra tambem.


LYSIAS.

                        Já sei que estás de amores.


MYRTO.

Que esperança! Bem vês que eu já não posso amar.


LYSIAS.

Perdeste o coração?


MYRTO.

                        Sim; perdi-o no mar.


LYSIAS.

Pesquemol-o; talvez essa perola fina
Venha ornar-me a existencia agourada e mofina.


MYRTO.

Mofina?


LYSIAS.

      Pois então? Enfarão-me estas bellas
Da terra samiana; assaz vivi por elas.
Outras desejo amar, filhas do azul Egeo.
Varia de feições o Amor, como Protheo.


MYRTO.

Seu carater melhor foi sempre o ser constante.

LYSIAS.

Serei menos fiel, não sou menos amante.
Cada belleza em si toda a paixão resume.
Pouco me importa a flôr; importa-me o perfume.


MYRTO.

Mas quem quer o perfume afaga um pouco a flôr;
Nem fere o objecto amado a mão que implora o amor.


LYSIAS.

Offendo-te com isto? Esquece a minha ofensa.


MYRTO.

Já esqueci; passou.


LYSIAS.

                        Quem falla como pensa
Arrisca-se a perder ou por sobra ou por mingoa.
Eu confesso o meu mal; não sei tentear a lingua.
Pois que me perdoaste, escuta-me. Tu tens
A graça das feições, o summo bem dos bens;
Moça, trazes na fronte o doce beijo de Hebe
Como um philtro de amor que, sem sentir, se bebe,
De teus olhos destilla a eterna juventude;
De teus olhos que um deus, por lhes dar mais virtude,
Fez azues como o céu, profundos como o mar.
Quem taes dotes reune, ó Myrto, deve amar.


MYRTO.

Fallas como um poeta, e zombas da poesia!

LYSIAS.

Eu, poeta? jámais.


MYRTO.

                        A tua fantasia
Respirou certamente o ar do monte Hymmeto.
Tem a expressão tão doce!


LYSIAS.

                        É a expressão do affecto.
Sou em cousas de Apollo um simples amador.
A minha grande musa é Venus, mãe do amor.
No mais não apprendi (os fados meus adversos
Vedárão-m’o!) a cantar bons e sentidos versos.
Cleon, esse é que sabe accender tantas almas,
Conquistar de um só lance os corações e as palmas.


MYRTO.

Conquistar, oh! que não!


LYSIAS.

                    Mas agradar?


MYRTO.

                   Talvez.


LYSIAS.

Isso mesmo; é já muito. O que o poeta fez
Fal-o-ei jamais? Contudo, inda tental-o quero;
Se não me inspira a musa, alma filha de Homero,
Inspira-me o desejo, a musa que delira,
E o seu canto concerta aos sons da eterna lyra.

MYRTO.

Tambem desejas ser alguma coisa?


LYSIAS.

                                 Não;
Eu caso o meu amor ás regras da razão.
Cleon quizera ser o espelho em que teu rosto
Sorri; eu, bela Myrto, eu tenho melhor gosto.
Ser espelho! ser banho! e tunica! tolice!
Esteril ambição! loucura! criancice!
Por Venus! sei melhor o que a mim me convem.
Homem sisudo e grave outros desejos tem.
Fiz, a este respeito, aprofundado estudo;
Eu não quero ser nada; eu quero dar-te tudo.
Escolhe o mais perfeito espelho de aço fino,
A tunica melhor de pano tarentino,
Vasos de oleo, um colar de perolas, — enfim
Quanto enfeita uma dama aceital-o-has de mim.
Brincos que vão ornar-te a orelha graciosa;
Para os dedos o annel de pedra preciosa;
A tua fronte pede aureo, rico anadema;
Têl-o-has, divina Myrto. É este o meu poema.


MYRTO.

É lindo!


LYSIAS.

      Queres tu, outras estrophes mais?

Dar-t’as-hei quais as teve a celebrada Lais.
Casa, rico jardim, servas de toda a parte;
E estatuas e paineis, e quantas obras d’arte
Podem servir de ornato ao templo da belleza,
Tudo haverás de mim. Nem gosto nem riqueza
Tu ha de faltar, mimosa, e só quero um penhor.
Quero... quero-te a ti.


MYRTO.

                        Pois que! já quer a flôr,
Quem desdenhando a flôr, só lhe pede o perfume?


LYSIAS.

Esqueceste o perdão?


MYRTO.

                        Ficou-me este azedume.


LYSIAS.

Venus póde apagal-o.


MYRTO.

                        Eu sei, creio e não creio.


LYSIAS.

Hesitar é ceder: agrada-me o receio.
Em assumpto de amor, vontade que fluctua
Está prestes a entregar-se. Entregas-te?


MYRTO.

                          Sou tua!

SCENA VIII


LYSIAS, MYRTO, CLEON.


CLEON.

Demorei-me demais?


LYSIAS.

                        Apenas o bastante
Para que fosse ouvido um coração amante.
A Lesbiana é minha.


CLEON.

                        És d’elle, Myrto!


MYRTO.

                                Sim;
Eu ainda hesitava; ele fallou por mim.


CLEON.

Quantos amores tens, filha do mal?


LYSIAS.

                                Presinto.
Uma lamentação inutil. «A Corintho
Não vai quem quer,» lá diz aquelle velho adagio.
Navegavas sem leme; era certo o naufragio.
Não me viste sulcar as mesmas aguas?


CLEON.

                                 Vi,

Mas contava com ella, e confiava em ti.
Mais duas illusões! Que importa? Inda são poucas;
Desfação-se uma a uma estas chimeras loucas.
Ó arvore bemdita, ó minha juventude,
Vão-te as flôres caindo ao vento aspero e rude!
Não vos maldigo, não; eu não maldigo o mar
Quando a nave sossobra; o erro é confiar.
Adeus, formosa Myrto; adeus, Lysias; não quero
Perturbar vosso amor, eu que já nada espero;
Eu que vou arrancar as profundas raizes
Desta paixão funesta; adeus, sede felizes!

LYSIAS.

Adeus! Saudemos nós a Vénus e a Lyeo.

AMBOS.

Io Pœan! ó Baccho! Hymenêo! Hymenêo!